Numa altura em que a sociedade de Lisboa se transforma e ganha uma nova identidade, fizemos um registo contemporâneo do agora, um documento de uma comunidade em transformação sustentada na identificação das histórias de vida que compõem o nosso quotidiano. Este registo, fotográfico, tem como objetivo preservar a memória viva da cidade e das histórias da comunidade. Para concretizar este levantamento fotográfico o Movimento de Expressão Fotográfica criou o projeto A Memória do Agora que desafiou fotógrafos a desenvolver um registo fotográfico documental na Freguesia de Marvila. A memória, matéria-prima da história, é fluída, dinâmica, capaz de criar vínculos entre o passado e o presente e está em constante construção. O projecto A Memória do Agora pretende a preservação da história e da memória num sentido micro criando um registo social de uma comunidade, claramente em transformação mas que conte toda uma história actual, de forma a construir um acervo da comunidade em fotografia e em texto.


O projecto A Memória do Agora realizado em Marvila contou com o apoio logístico da Junta de Freguesia de Marvila e com o apoio financeiro da Câmara Municipal de Lisboa nos termos do RAAML.


. EXPOSIÇÃO . LIVRO . IMPRENSA . POSTAIS .


HISTÓRIAS DO CONDADO de Tânia Araújo

Bairro arquitectado por Tomás Taveira nos anos 80, na zona J de Chelas (hoje bairro do Condado), é um bairro onde podemos encontrar amor, simpatia e comunidade. Aqui existem pessoas que vieram de vários lugares, Cabo Verde, Guiné Bissau, norte de Portugal. Existe um ambiente de bairro, todos se conhecem, partilham a mesma história, uma história de comunidade.
Conheci Maria Alice e António, naturais do norte de Portugal, que vieram viver para a Zona J (hoje bairro do Condado) no dia 28 de Janeiro de 1982, dia em que lhe foram entregues as chaves. Estes prédios, como Maria Alice diz “inicialmente eram todos brancos, mas já quando estava a viver aqui, vimos esta mudança de cor”.
Passaram 38 anos desde que vieram viver para aqui, filhos criaram, muitos anos passaram. Conhecem muitos dos vizinhos. Um dos vizinhos, que mora mesmo ao lado do prédio é José Manuel Morais, 66 anos, natural de Cabo Verde, Ilha de Santo Antão, veio com 15 anos para Portugal. Vive na zona de Marvila desde essa altura. Conhecido por todos no bairro como Joe, tem a sua horta, ajuda na mecânica o Sr. João e vende ferro velho que encontra e que lhe dão.

CHELAS, 2020 de João Pedro Morais

Um retrato urbano de Marvila num agora tão conturbado. Começou à boleia dos versos de Sam The Kid, uma das grandes figuras de Chelas e de Marvila. Bairrista desde sempre, fotografado na mítica praceta em frente à casa onde cresceu; recordou a altura em que levava o rádio cinzento com as cassetes que gravava em programas de rádio. Décadas depois, é um dos grandes nomes da música portuguesa.
E porque acredito que as pessoas e o meio que em que se inserem contam milhares de histórias: os restantes retratos são pequenas miragens dessas histórias que Chelas tem para contar. É uma zona cheia de pessoas boas e com valor para comunidade.
O sítio onde eu moro,  o sitio onde eu vivo, o sitio onde eu paro e fico pensativo (…) // Tempos tão mudados, nomes são alterados // Mas olhos continuam sempre atrás dos cortinados // (…) Sítio divido em zonas com letras do alfabeto // Zonas dividas em lotes com mau aspecto (…)// É aqui que eu nasço, é aqui que eu morro. Chelas, Sam The Kid, 2002.

“A primeira regra do Fight Club é: não se fala do Fight Club. A segunda regra do Fight Club é: não se fala do Fight Club. “ – Fight Club (1999)

de Francisco Morais

Disciplina; Rigor; Vontade; Suor; Respeito;

Durante várias horas senti a vontade e o prazer dos praticantes, de ambos os sexos e várias idades, de várias modalidades em treinar com afinco diversas modalidades de combate. Do simples treino físico ao kickboxing, do Jiu Jitsu ao Boxe. Os sons das “explosões” contra os sacos de boxe, o suor a escorrer abundantemente, os gritos de superação, tudo faz parte de uma aula no Marvila Fight Club. Num ano marcado pelas limitações do COVID19 e pelas exigentes medidas de segurança tomadas, o clube esteve fechado durante algum tempo e retomou a atividade em setembro, dando uma oportunidade a todos os praticantes de, seguindo rigorosas medidas de desinfeção, voltarem a praticar a modalidade que elegeram como preferida.

SR. FRANCISCO de Luís Rocha

Conheci o Sr. Francisco em 2011, foi-me apresentado por um amigo, na altura fomos recebidos com um tacho de cachupa cabo-verdiana colocado na mesa à nossa disposição. Éramos 5 ou 6 pessoas nesse almoço, foi uma tarde de partilha e de muitas histórias. Desde então, sempre que possível, proponho aos formandos das ações de formação do MEF a sua horta no Vale de Chelas como opção de terreno documental, em Abril de 2016 foi convidado de honra de uma das alunas. Há umas semanas desci novamente a encosta para o fotografar, a horta não é mais o espaço de convívio, está tomada pelo passar do tempo. Telefonei-lhe, marcámos uma conversa para daqui a uns dias. 

O CANTO DAS ARTES E DAS MANHAS de Alexandre Carvalho


A Doca do Poço do Bispo foi projetada e concebida para apoiar o intenso transito de mercadorias
existente no rio Tejo, em meados do século XX. A Doca, era o ponto de chegada das matérias primas, com destino às fábricas (Fábrica do Sabão, Fábrica de Material de Guerra, Abel Pereira da Fonseca, e outras) e de partida dos barcos carregados com os produtos transformados para consumo das populações das mais diversas regiões do país. A atividade portuária era bastante intensa e havia uma grande necessidade de mão-de-obra. O panorama atual da Doca do Poço do Bispo não deixa adivinhar a importância do seu passado para as gentes de Marvila. Mas “há sempre alguém que resiste” … num canto da Doca, ao cimo da rampa, outrora local de grande azáfama na carga e descarga das embarcações e hoje apenas ocupada pelos barcos ali deixados, um grupo de resistentes tem o seu ponto de encontro diário. Recordam as artes … e as manhas para escapar de quem os queria apanhar.
Testemunhas das mudanças diárias daquele lugar são, ao mesmo tempo, os fiéis depositários das
memórias da Doca do Poço do Bispo.

CFC (Clube de Futebol de Chelas) de Ana França


O primeiro campo de areia da cidade de Lisboa fica no Clube Futebol de Chelas, em Marvila e nasceu em julho de 2017. Local onde uma equipa solta o pé na areia ao toque da bola sempre com o objetivo de superar o ano anterior, de fazer sempre melhor. 
A pandemia trouxe paragens/atrasos nos treinos e campeonato, tendo sido mais concentrados no tempo e exigentes em igual forma a anos anteriores. Foram muitos finais de dia de trabalho árduo na preparação para um campeonato rigoroso que se aproximava. Este ano não houve espetadores nas bancadas, mas a comunidade marcou presença ao contribuir com o seu apoio fora do campo, motivando aqueles que representam as cores do seu clube.
É uma família alargada aquela que encontramos, onde todos contribuem com o seu esforço e empenho, acreditando que a capacidade de cada um fortalece o todo. A luta pela subida à divisão de elite irá continuar. “Chelas! Chelas! Chelas!”


VIDAS SIMPLES de Mafalda Oliveira Monteiro

O retrato de duas mulheres que desempenham um papel socialmente relevante em Marvila e de outras vidas simples.D. Aurora nunca esqueceu o que a mãe lhe ensinou: “o que damos com uma mão, recebemos com duas”. Fundadora do Grupo Inter-geracional Amigos dos Lóios, orgulha-se de promover e incentivar a vida em comunidade através da organização de passeios pelo país a preços simbólicos, almoços, bailaricos e festas na Praça, sobretudo dirigidos a trazer um brilho ao olhar dos mais seniores e dos que vivem mais sós.A D. Augusta acredita que o segredo da vida está em partilhar momentos bons, lembrando que existe sempre um caminho. Através da Associação de Inter-ajuda de Jovens “Eco-estilistas”, D. Augusta e os seus jovens, de idades entre os 12 e os 15 anos, com materiais recicláveis inicialmente recolhidos das ruas e actualmente doados pela Comunidade, transformam lixo em maravilhosos vestidos e acessórios que exibem em desfiles de moda em Portugal e no estrangeiro. Com a ajuda de voluntários, D. Augusta e a sua Associação organizam também variados workshops de música, dança, culinária, xadrez, desporto, todos direccionados à motivação de jovens entre os 12 e os 15 anos e ao seu afastamento do risco.

CONTRASTES de Rita Castro

Conhecer Marvila é perceber que há múltiplas realidades dentro de uma só zona. Trata-se de uma freguesia onde: o novo e o velho se juntam; fábricas cinzentas vivem, lado a lado, com o rio azul; as quintas e os edifícios altos co habitam; a velocidade do dia a dia contrapõe-se ao silêncio dos sábados e domingos; edifícios muito coloridos estão colados a prédios totalmente brancos; a azáfama da Feira do Relógio no domingo rompe com a estrada comprida de alcatrão vazia do dia anterior; o rio Tejo abre a imensidão do fechamento próprio de uma comunidade; a luz e os seus reflexos surgem no escuro ou no menos visível; a arte urbana serpenteia a arquitetura simples e modesta; o comboio passa junto às habitações, agitando o ar que se vive nelas.
Simultaneamente a todos estes contrastes, existe uma harmonia que os liga; como se um fio condutor invisível unisse as diferenças e as tornasse semelhanças, construindo um todo. 

SOBRAL E POTES. COLUMBÓFILOS de Ana Isa

José João Sobral, natural da região de Vila Real, reside em Marvila desde 1976 onde constituiu família e se apaixonou pela Columbófilia. No início dos anos 90 torna-se associado da Federação Portuguesa de Columbofilia e, em 92, é-lhe atribuído território no Bairro das Salgadas para o pombal que construíu de raiz com as suas mãos. José Sobral é comunicativo, frontal e sentimental, orgulha-se do desporto – ao qual se dedicará até conseguir – e da relação que desenvolve com os restantes 9 columbófilos daquela comunidade que se reunem regularmente no seu pombal. Em sociedade com Mariano Potes há 10 anos com quem divide responsabilidades e partilha a paixão por pássaros e animais, é com este que discute ideias de criação, de treino e sobre a campanha dos pombos. Ser columbófilo é algo que fazem por prazer e pelo sentido de pertença à comunidade.

PRIMEIRO ABRE-SE A PORTA de Maria Abranches


Marcada por grandes contrastes, Marvila é das poucas freguesias lisboetas que conserva um conjunto de azinhagas que nos transportam para o passado rural da cidade. 
Numa visita à Azinhaga da Salgada conheci o Luís, o primeiro a “abrir-me as portas” para o passado daquele lugar. Mostrou-me a sua casa, o seu quintal, a vista assombrosa que tem sobre Marvila, falou-me das suas memórias de infância e apresentou-me aos moradores mais antigos do arco nº105. 
Numa outra visita cruzei-me com o Sr. Leontino, numa das caminhadas que faz religiosamente todas as manhãs. Leontino, com 81 anos, recebeu-me em casa com um enorme sorriso e apresentou-me a sua mulher, Manuela, cujo retrato tem como fundo as plantas do bonito jardim que o casal trata com o mesmo amor com que fala daquele bairro.
Um pouco mais acima, nas escadinhas do nº105, vive um dos casais mais antigos da Azinhaga da Salgada. Odete e António, com 91 anos, recordam com saudade os tempos dos bailes e dos teatros organizados pela Comissão de Moradores de Marvila, num bonito palácio do século XVIII, agora em ruínas. 
O espírito de comunhão e de entreajuda, valores que não se perderam com o tempo, são como frestas das memórias destes “estreitos caminhos rústicos”, que obrigam à proximidade, e que fazem deste lugar um pequeno paraíso rural que une as suas gentes e as separa, com muros altos, do resto da cidade